Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder
Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua resolução 40/34, de 29 de Novembro de 1985.
A Assembléia Geral,
Lembrando que o Sexto Congresso sobre a Prevenção do Crime
e o Tratamento dos Delinqüentes recomendou que a Organização
das Nações Unidas prosseguisse o seu atual trabalho de
elaboração de princípios orientadores e de normas
relativas ao abuso de poder econômico e político 56,
Consciente de que milhões de pessoas em todo o mundo sofreram
prejuízos em conseqüência de crimes e de outros atos
representando um abuso de poder e que os direitos destas vítimas
não foram devidamente reconhecidos,
Consciente de que as vítimas da criminalidade e as vítimas
de abuso de poder e, freqüentemente, também as respectivas
famílias, testemunhas e outras pessoas que acorrem em seu auxílio
sofrem injustamente perdas, danos ou prejuízos e que podem, além
disso, ser submetidas a provações suplementares quando
colaboram na perseguição dos delinqüentes,
1. Afirma a necessidade de adoção, a
nível nacional e internacional, de medidas que visem garantir
o reconhecimento universal e eficaz dos direitos das vítimas
da criminalidade e de abuso de poder;
2. Sublinha a necessidade de encorajar todos os Estados a desenvolverem
os esforços feitos com esse objetivo, sem prejuízo dos
direitos dos suspeitos ou dos delinqüentes;
3. Adota a Declaração dos Princípios Básicos
de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade
e de Abuso de Poder, que consta em anexo à presente resolução,
e que visa ajudar os Governos e a comunidade internacional nos esforços
desenvolvidos, no sentido de fazer justiça às vítimas
da criminalidade e de abuso de poder e no sentido de lhes proporcionar
a necessária assistência;
4. Solicita aos Estados membros que tomem as medidas necessárias
para tornar efetivas as disposições da Declaração
e que, a fim de reduzir a vitimização, a que se faz referência
daqui em diante, se empenhem em:
a) Aplicar medidas nos domínios da assistência social,
da saúde, incluindo a saúde mental, da educação
e da economia, bem como medidas especiais de prevenção
criminal para reduzir a vitimização e promover a ajuda
às vítimas em situação de carência;
b) Incentivar os esforços coletivos e a participação
dos cidadãos na prevenção do crime;
c) Examinar regularmente a legislação e as práticas
existentes, a fim de assegurar a respectiva adaptação
à evolução das situações, e adotar
e aplicar legislação que proíba atos contrários
às normas internacionalmente reconhecidas no âmbito dos
direitos do homem, do comportamento das empresas e de outros atos de
abuso de poder;
d) Estabelecer e reforçar os meios necessários à
investigação, à prossecução e à
condenação dos culpados da prática de crimes;
e) Promover a divulgação de informações
que permitam aos cidadãos a fiscalização da conduta
dos funcionários e das empresas e promover outros meios de acolher
as preocupações dos cidadãos;
f) Incentivar o respeito dos códigos de conduta e das normas
éticas, e, nomeadamente, das normas internacionais, por parte
dos funcionários, incluindo o pessoal encarregado da aplicação
das leis, o dos serviços penitenciários, o dos serviços
médicos e sociais e o das forças armadas, bem como por
parte do pessoal das empresas comerciais;
g) Proibir as práticas e os procedimentos susceptíveis
de favorecer os abusos, tais como o uso de locais secretos de detenção
e a detenção em situação incomunicável;
h) Colaborar com os outros Estados, no quadro de acordos de auxílio
judiciário e administrativo, em domínios como o da investigação
e o da prossecução penal dos delinqüentes, da sua
extradição e da penhora dos seus bens para os fins de
indenização às vítimas.
5. Recomenda que, aos níveis internacional e regional, sejam
tomadas todas as medidas apropriadas para:
a) Desenvolver as atividades de formação destinadas a
incentivar o respeito pelas normas e princípios das Nações
Unidas e a reduzir as possibilidades de abuso;
b) Organizar trabalhos conjuntos de investigação, orientados
de forma prática, sobre os modos de reduzir a vitimização
e de ajudar as vítimas, e para desenvolver trocas de informação
sobre os meios mais eficazes de o fazer;
c) Prestar assistência direta aos Governos que a peçam,
a fim de os ajudar a reduzir a vitimização e a aliviar
a situação de carência em que as vítimas
se encontrem;
d) Proporcionar meios de recurso acessíveis às vítimas,
quando as vias de recurso existentes a nível nacional possam
revelar-se insuficientes.
6. Solicita ao Secretário Geral que convide os Estados membros
a informarem periodicamente a Assembléia Geral sobre a aplicação
da Declaração, bem como sobre as medidas que tomem para
tal efeito;
7. Solicita, igualmente, ao Secretário Geral que utilize as oportunidades
oferecidas por todos os órgãos e organismos competentes
dentro do sistema das Nações Unidas, a fim de ajudar os
Estados membros, sempre que necessário, a melhorarem os meios
de que dispõem para proteção das vítimas
a nível nacional e através da cooperação
internacional;
8. Solicita, também, ao Secretário-Geral que promova a
realização dos objetivos da Declaração,
nomeadamente dando-lhe uma divulgação tão ampla
quanto possível;
9. Solicita, insistentemente, às instituições especializadas
e às outras entidades e órgãos da Organização
das Nações Unidas, às outras organizações
intergovernamentais e não governamentais interessadas, bem como
aos cidadãos em geral, que cooperem na aplicação
das disposições da Declaração.
96.ª sessão plenária
29 de Novembro de 1985
ANEXO
Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça
Relativos às Vítimas
da Criminalidade e de Abuso de Poder
A. Vítimas da criminalidade
1. Entendem-se por "vítimas" as pessoas que, individual
ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um
atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento
de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos
fundamentais, como conseqüência de atos ou de omissões
violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as
que proíbem o abuso de poder.
2. Uma pessoa pode ser considerada como "vítima", no
quadro da presente Declaração, quer o autor seja ou não
identificado, preso, processado ou declarado culpado, e quaisquer que
sejam os laços de parentesco deste com a vítima. O termo
"vítima" inclui também, conforme o caso, a família
próxima ou as pessoas a cargo da vítima direta e as pessoas
que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência
às vítimas em situação de carência
ou para impedir a vitimização.
3. As disposições da presente seção aplicam-se
a todos, sem distinção alguma, nomeadamente de raça,
cor, sexo, idade, língua, religião, nacionalidade, opiniões
políticas ou outras, crenças ou práticas culturais,
situação econômica, nascimento ou situação
familiar, origem étnica ou social ou capacidade física.
Acesso à justiça e tratamento eqüitativo
4. As vítimas devem ser tratadas com compaixão e respeito
pela sua dignidade. Têm direito ao acesso às instâncias
judiciárias e a uma rápida reparação do
prejuízo por si sofrido, de acordo com o disposto na legislação
nacional.
5. Há que criar e, se necessário, reforçar mecanismos
judiciários e administrativos que permitam às vítimas
a obtenção de reparação através de
procedimentos, oficiais ou oficiosos, que sejam rápidos, eqüitativos,
de baixo custo e acessíveis. As vítimas devem ser informadas
dos direitos que lhes são reconhecidos para procurar a obtenção
de reparação por estes meios.
6. A capacidade do aparelho judiciário e administrativo para
responder às necessidades das vítimas deve ser melhorada:
a) Informando as vítimas da sua função e das possibilidades
de recurso abertas, das datas e da marcha dos processos e da decisão
das suas causas, especialmente quando se trate de crimes graves e quando
tenham pedido essas informações;
b) Permitindo que as opiniões e as preocupações
das vítimas sejam apresentadas e examinadas nas fases adequadas
do processo, quando os seus interesses pessoais estejam em causa, sem
prejuízo dos direitos da defesa e no quadro do sistema de justiça
penal do país;
c) Prestando às vítimas a assistência adequada ao
longo de todo o processo;
d) Tomando medidas para minimizar, tanto quanto possível, as
dificuldades encontradas pelas vítimas, proteger a sua vida privada
e garantir a sua segurança, bem como a da sua família
e a das suas testemunhas, preservando-as de manobras de intimidação
e de represálias;
e) Evitando demoras desnecessárias na resolução
das causas e na execução das decisões ou sentenças
que concedam indenização às vítimas.
7. Os meios extrajudiciários de solução de diferendos,
incluindo a mediação, a arbitragem e as práticas
de direito consuetudinário ou as práticas autóctones
de justiça, devem ser utilizados, quando se revelem adequados,
para facilitar a conciliação e obter a reparação
em favor das vítimas.
Obrigação de restituição e de reparação
8. Os autores de crimes ou os terceiros responsáveis pelo seu
comportamento devem, se necessário, reparar de forma eqüitativa
o prejuízo causado às vítimas, às suas famílias
ou às pessoas a seu cargo. Tal reparação deve incluir
a restituição dos bens, uma indenização
pelo prejuízo ou pelas perdas sofridos, o reembolso das despesas
feitas como conseqüência da vitimização, a
prestação de serviços e o restabelecimento dos
direitos.
9. Os Governos devem reexaminar as respectivas práticas, regulamentos
e leis, de modo a fazer da restituição uma sentença
possível nos casos penais, para além das outras sanções
penais.
10. Em todos os casos em que sejam causados graves danos ao ambiente,
a restituição deve incluir, na medida do possível,
a reabilitação do ambiente, a reposição
das infra-estruturas, a substituição dos equipamentos
coletivos e o reembolso das despesas de reinstalação,
quando tais danos impliquem o desmembramento de uma comunidade.
11. Quando funcionários ou outras pessoas, agindo a título
oficial ou quase oficial, tenham cometido uma infração
penal, as vítimas devem receber a restituição por
parte do Estado cujos funcionários ou agentes sejam responsáveis
pelos prejuízos sofridos. No caso em que o Governo sob cuja autoridade
se verificou o cato ou a omissão na origem da vitimização
já não exista, o Estado ou o Governo sucessor deve assegurar
a restituição às vítimas.
Indenização
12. Quando não seja possível obter do delinqüente
ou de outras fontes uma indenização completa, os Estados
devem procurar assegurar uma indenização financeira:
a) Às vítimas que tenham sofrido um dano corporal ou um
atentado importante à sua integridade física ou mental,
como conseqüência de atos criminosos graves;
b) À família, em particular às pessoas a cargo
das pessoas que tenham falecido ou que tenham sido atingidas por incapacidade
física ou mental como conseqüência da vitimização.
13. Será incentivado o estabelecimento, o reforço e a
expansão de fundos nacionais de indenização às
vítimas. De acordo com as necessidades, poderão estabelecer-se
outros fundos com tal objetivo, nomeadamente nos casos em que o Estado
de nacionalidade da vítima não esteja em condições
de indemnizá-la pelo dano sofrido.
Serviços
14. As vítimas devem receber a assistência material, médica,
psicológica e social de que necessitem, através de organismos
estatais, de voluntariado, comunitários e autóctones.
15. As vítimas devem ser informadas da existência de serviços
de saúde, de serviços sociais e de outras formas de assistência
que lhes possam ser úteis, e devem ter fácil acesso aos
mesmos.
16. O pessoal dos serviços de polícia, de justiça
e de saúde, tal como o dos serviços sociais e o de outros
serviços interessados deve receber uma formação
que o sensibilize para as necessidades das vítimas, bem como
instruções que garantam uma ajuda pronta e adequada às
vítimas.
17. Quando sejam prestados serviços e ajuda às vítimas,
deve ser dispensada atenção às que tenham necessidades
especiais em razão da natureza do prejuízo sofrido ou
de fatores tais como os referidos no parágrafo 3, supra.
B. Vítimas de abuso de poder
18. Entendem-se por "vítimas" as pessoas que, individual
ou coletivamente, tenham sofrido prejuízos, nomeadamente um atentado
à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem
moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais,
como conseqüência de atos ou de omissões que, não
constituindo ainda uma violação da legislação
penal nacional, representam violações das normas internacionalmente
reconhecidas em matéria de direitos do homem.
19. Os Estados deveriam encarar a possibilidade de inserção
nas suas legislações nacionais de normas que proíbam
os abusos de poder e que prevejam reparações às
vítimas de tais abusos. Entre tais reparações deveriam
figurar, nomeadamente, a restituição e a indenização,
bem como a assistência e o apoio de ordem material, médica,
psicológica e social que sejam necessários.
20. Os Estados deveriam encarar a possibilidade de negociar convenções
internacionais multilaterais relativas às vítimas, de
acordo com a definição do parágrafo 18.
21. Os Estados deveriam reexaminar periodicamente a legislação
e as práticas em vigor, com vista a adaptá-las à
evolução das situações, deveriam adotar
e aplicar, se necessário, textos legislativos que proibissem
qualquer cato que constituísse um grave abuso de poder político
ou econômico e que incentivassem as políticas e os mecanismos
de prevenção destes atos e deveriam estabelecer direitos
e recursos apropriados para as vítimas de tais atos, garantindo
o seu exercício.